Nas últimas semanas, o polêmico debate em torno do projeto WORLD ID, criado por Sam Altman, fundador da OpenAI, colocou a biometria de íris no centro de uma discussão que nos faz refletir sobre uma nova era da economia digital, acontecendo bem diante dos nossos olhos – nesse caso, literalmente. A proposta envolve criar uma identidade digitalizada global baseada no escaneamento da íris, diferenciando humanos de inteligência artificial (IA). Para alguns, a iniciativa é atraente; para outros, futurista demais. Contudo, é essencial refletirmos: até que ponto vender parte de nossa identidade é aceitável em termos de segurança?
No Brasil, mais de 150 mil pessoas já aderiram à iniciativa da empresa desde novembro de 2024 e, em troca, receberam recompensas financeiras na forma de criptomoedas (WorldCoin). São Paulo, por exemplo, abriga atualmente mais de 40 pontos de coleta. Há quem diga que essas tecnologias parecem cenas de filmes, como na animação da Pixar ‘Os Incríveis’, em que a estilista Edna Moda passa por biometria digital, de íris e de voz, para entrar em seu laboratório. No entanto, essas inovações já fazem parte do presente e a evolução das ferramentas de autenticação tem sido exponencial.
Não à toa, em um mundo onde as senhas já não são suficientemente seguras, vimos o surgimento de métodos como a autenticação em dois fatores e a biometria digital, amplamente utilizada em dispositivos móveis e caixas eletrônicos. Nos últimos 4 anos, a biometria facial ganhou ainda mais força, integrando celulares, sistemas bancários e processos de compra. Contudo, a sofisticação dos deep fakes já aponta os limites dessa tecnologia, expondo vulnerabilidades que abrem margem para fraudes.
Uma coisa é certa: de todas as opções biométricas, hoje, a íris se destaca como a mais difícil de ser falsificada. Seu padrão único e intrincado é virtualmente impossível de ser replicado por uma máquina. Essa singularidade, porém, transforma essa biometria em um recurso altamente sensível e, ao mesmo tempo, valioso. Aqui reside o cerne da controvérsia: embora a Tools for Humanity, a empresa do grupo responsável pela captura dos dados biométricos da íris, argumente que essa coleta do dado garante maior segurança no futuro digital, a prática levanta sérias questões éticas e de privacidade.
Afinal, estamos falando de uma empresa cujo fundador lidera também a OpenAI, criadora do ChatGPT e outras IA avançadas. Isso significa que a mesma pessoa que constrói ferramentas capazes de criar avatares quase indistinguíveis de humanos defende que somente a íris pode ser a prova de nossa humanidade. A concentração de poder e controle sobre esse dado levanta suspeitas legítimas sobre o quão confiável é entregar tamanha responsabilidade a uma corporação.
Apesar das iniciativas, países como Espanha e Portugal já emitiram suspensões temporárias das atividades da WORLD ID, citando preocupações com a privacidade e o uso inadequado de dados biométricos. No Brasil, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) instaurou um processo de fiscalização para avaliar a conformidade do projeto com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Sendo que, na sexta-feira (24/01), a ANPD emitiu uma decisão que a troca de cripto pela biometria está suspensa. Em outras palavras, esses movimentos refletem um esforço para garantir que a segurança de informações sensíveis acompanhe o ritmo acelerado da inovação tecnológica.
Contudo, o apelo da biometria de íris como solução de segurança contra fraudes e usurpações digitais é inegável. Porém, é preciso lembrar que sistemas digitais, independentemente de sua sofisticação, são vulneráveis a avanços futuros da própria tecnologia. Se hoje nenhuma IA generativa é capaz de replicar uma íris, amanhã, com uma base de dados ampla, isso poderá se tornar viável.
É preciso estarmos atentos para empresas que detêm grandes quantidades de dados biométricos e acompanhar se o uso dessas informações não está sendo aplicado para finalidades não autorizadas, como a venda para terceiros. Portanto, é muito importante que os órgãos reguladores e de proteção de dados acompanhem de perto esses movimentos, não só para regular a coleta, mas para educar a população. Regulamentações robustas, como as analisadas pelo “Radar Tecnológico: Biometria” da ANPD, elucidam essa discussão e precisam ser acompanhadas com o envolvimento de toda a sociedade.
Em suma, estamos entrando em um território ainda pouco conhecido, onde o valor de nossos dados ultrapassa nossa compreensão imediata. Permitir que eles sejam negociados ou acumulados por grandes empresas exige cautela, sobretudo em um mundo onde o desequilíbrio de poder se intensifica com a concentração de informações. Vender suas informações não deve ser encarada apenas como uma decisão financeira, mas uma escolha com implicações sobre quem controla nossas identidades em um futuro digital.
Marcelo Queiroz, Superintendente de Estratégia e Inovação da ClearSale.